Poucas pessoas tiveram o privilégio de entrar na casa de um poeta como Zé Galdino. Eu tive, ainda criança, num domingo de manhã. Fui acompanhado do meu pai e de Zezinho, que era um grande fã dele. Lembro como se fosse hoje: ao atravessar a porta de sua casa em Ferreiros, fiquei impressionado. De repente, eu estava dentro do universo íntimo de um dos maiores mestres que Pernambuco já teve.
A simplicidade de Zé me chamou a atenção logo de início. Vi seus troféus espalhados, frutos das muitas vitórias em festivais. Vi suas violas, que pareciam guardiãs das melodias que encantaram tanta gente. Até as unhas longas, que ele deixava para tocar, ficaram gravadas na minha memória. Enquanto meu pai e Zezinho conversavam com ele, eu só conseguia observar e ouvir. Zé falava com calma, com sabedoria, como quem carrega o dom de ensinar até mesmo no jeito simples de contar histórias.
Naquele tempo, sua saúde já não era tão boa. Cheguei a ouvir sobre a fase difícil em que quase perdeu a voz. E pensei: um poeta sem voz é como ter a canção e não poder cantá-la. Mas, mesmo fragilizado, ainda encontrou força para pegar sua viola e arrancar alguns versos, como se não quisesse deixar passar a oportunidade de semear poesia em cada encontro.
Nunca vi um mestre como Zé. Sua voz doce era linda, e ao mesmo tempo imponente. Era, sem dúvida, a voz mais marcante da cultura popular. Quem teve a sorte de ouvi-lo sabe do que estou falando. Quem viu Zé é prova do que ele foi: o maior mestre, poeta e cirandeiro que já tive a honra de ouvir e ver.
Eu já tinha nele a imagem de um artista grandioso, e naquele momento confirmei tudo o que imaginava. Não era apenas o mestre da viola, do repente, da ciranda ou do maracatu. Era alguém que carregava dentro de si a essência da cultura popular, que transformava vida em arte. Nunca deixei de gostar de ouvir suas canções, em especial a sua “Ciranda do Amor”, que até hoje me emociona.
Zé nasceu José Galdino dos Santos e se tornou Mestre Zé Galdino. Ganhou mais de 300 festivais de violeiros e repentistas, levou o nome de Buenos Aires e da Zona da Mata para o mundo, comandou o Maracatu Estrela Dourada, gravou disco com Mestre Barachinha, fundou o Beija Flor de Ferreiros e, acima de tudo, abriu caminhos para tantos outros artistas. Foi mestre de ciranda, mestre de maracatu, mestre da vida.
Ele se despediu de nós em novembro de 2019, depois de lutar contra o câncer. Sua última aparição nos palcos foi pouco antes disso, quando dividiu versos com o Mestre Bi. Partiu, mas não nos deixou órfãos. Ficamos com sua ciranda, que é também um jeito de ensinar a amar.
Quando penso naquele domingo da minha infância, sinto que recebi um presente raro. Estive diante de um homem simples, sábio e grandioso. E se fecho os olhos, ainda consigo ver o brilho das violas, as marcas dos troféus, a serenidade no seu olhar e a poesia nas cordas que ele dedilhou.
E há um detalhe que me acompanha até hoje: o pesar de não ter nenhum registro fotográfico ou vídeo daquela manhã. Gostaria de ter guardado em imagens o instante em que estive com ele. Mas, talvez, seja justamente essa ausência que me faça valorizar ainda mais a lembrança, que ficou intacta no coração.
Zé Galdino se foi, mas sua ciranda continua girando dentro de nós. E cada vez que ela toca, é como se ele estivesse ali, sorrindo e nos convidando a entrar no compasso do amor.
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